O tempo que resta
Escatologia
Os protestantes deixaram de falar sobre o tema Escatologi, e os demais evangélicos negam completamente sua relevância – vale apenas o aqui e o agora.
No Antigo Testamento a fé de Israel está baseada na expectativa da vinda do Messias, em particular a partir do momento em que a nação é conquistada por outros povos - e daí surge a esperança e a expectativa messiânica. Tal expectativa tem a ver com a redenção da nação, e não com algum tipo de redenção pessoal, individual. A vinda do Cristo, que quer dizer Messias, é aceita por grande parte dos judeus daquela época por causa da evidência, a qual o próprio messias, o Cristo, aponta para que João Batista saiba que ele era de fato o messias, conforme Mateus 11:5:
Quando João ouviu, no cárcere, falar das obras de Cristo, mandou por seus discípulos perguntar-lhe: És tu aquele que estava para vir ou havemos de esperar outro? E Jesus, respondendo, disse-lhes: Ide e anunciai a João o que estais ouvindo e vendo: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres está sendo pregado o evangelho. E bem-aventurado é aquele que não achar em mim motivo de tropeço.
Olam hazzeh, olam habba
Todavia, ocorre uma frustração de expectativas – o messias morre sem restaurar o reino a Israel, e nunca mais volta, apesar de ter dito que voltaria... Disso decorre que o messianismo judaico não pode aceitar que Jesus era de fato o messias. A expectativa do judeu ainda podia aguardar o adiamento por algum tempo, estabelecendo aquilo que erroneamente se chama de igreja de Jerusalém. Mas não conseguiu se adaptar à ideia de um messias cujo reino não se implanta nem agora nem nunca...
Na tradição rabínica, e da apocalíptica judaica, existem dois tempos ou dois mundos (80): olam hazzeh, e olam habba. O primeiro tempo, ou primeiro mundo, inclui o tempo que vai da criação até o seu fim. O segundo tempo, ou segundo mundo, é a eternidade atemporal que vem após esse primeiro período.
No entanto, o messias que se apresenta não cumpre a passagem do tempo para olam habba: ele anuncia o reino, mas o reino não se estabelece... olam habba não acontece. Como há algo acontecendo na cidade, um movimento intenso que envolveu os eventos da morte, ressurreição e Ascenção de Jesus, os judeus se reúnem, então, para esperar que o tempo se cumpra, até por ordem do messias, que lhes havia dito que esperassem até que do alto fossem revestidos de poder. Todavia, a espera não se conclui com a volta do messias. Ao contrário, são perseguidos e dispersos. Nada de olam habba.
A cunha que fende o olamin
Surge então um tempo não esperado, o tempo que resta, nas palavras de Amgaben. Ele é como uma cunha que fende olam hazzeh e olam habba, inserindo entre os dois tempos, ou os dois mundos, mais um tempo, mais um outro mundo. Isso se constitui em desafio para os teólogos cristãos, e em impossibilidade para os judeus. No âmbito cristão, quando se começa a pensar sobre essas coisas, surge o conceito do “já e ainda não” – ou seja, o reino está sinalizado na história, mas não se concretiza em definitivo. Para os judeus, isso não é possível.
É um resto de tempo, ou um tempo que resta, que tem uma característica muito especial, e estranha: é uma contagem regressiva em contínua expansão... Veja o caso da “igreja de Jerusalém”: espera-se o retorno do messias, mas ele não vem... ou o caso de todos os outros messianismos históricos, até mesmo os exclusivamente políticos.
Quais são as características desse tempo que resta?
Em primeiro lugar, essa que acabei de relatar. O escathón, no grego, ou o olam habba, para os judeus, está sempre às portas, mas é uma contagem regressiva que está sempre em expansão, sempre se adiando. Em segundo lugar, é um tempo no qual a esperança se adia indefinidamente, fazendo com que pareça apenas uma miragem – em parte, dá espaço para a teologia da prosperidade: se o céu não vem, façamos o céu aqui. Em terceiro lugar, é um tempo de tensões constantes, naturalmente oriundas do fato de que há, nessa era, características tanto de olam hazzeh como de olam habba.
As tensões do tempo messiânico
Sinais históricos da redenção
Se nós estamos num tempo entre tempos, o tempo de “já mas ainda não”, percebe-se com facilidade que remanescem as características do tempo passado enquanto já se manifestam características do tempo que vem. Vejamos se isso é assim. É Paulo que diz, em Galátas 3:28:
Portanto, já não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um em Jesus messias (ou Cristo)
Note-se que, nesse texto, Paulo não está falando de uma realidade concreta, mas de uma expectativa potencial a partir do batismo em Cristo. Ele está discorrendo sobre a insensatez dos Gálatas que estavam se submetendo à lei judaica, ao que ele contrapõe a graça de Deus, responsável por essa sinalização histórica, ou seja, mais uma vez o já mas ainda não. Note-se que a percepção de Paulo não se cumpre naquele momento, e o próprio apóstolo em outros trechos deixa clara sua percepção da inferioridade da mulher em relação ao homem, ainda que seja ele um progressista para a época, neste quesito.
Fato é que a redenção histórica, a emancipação de escravos e de mulheres só vai se estabelecer muito tempo depois. Aquilo que Paulo viu como consequência natural da fé no Messias só viria a ocorrer no ocidente, e muito recentemente – em ambas as situações, ou seja, em relação à liberação da mulher e ao fim da escravidão. Mas, essas redenções são prenunciadas a partir da cruz de Cristo, que se estabelecem na história muito tempo após a pregação de Paulo a esse respeito.
Crises oriunda dos choques entre os mundos, entre os tempos
Vejamos, os elementos do tempo passado são essencialmente de apego. A grande promessa dentro de olam hazzeh é o estabelecimento na terra, o desfrute da criação em suas concepções mais concretas. Para olam habba as promessas são de outra natureza. Não se trata de uma terra que mana leite e mel, mas de um tempo no qual animais pastarão juntos e os homens não mais farão a guerra. Porque, de algum modo, parece que valores como propriedade, posse, casamento, profissão, não fazem muito sentido após o escathón. Assim, vivemos em grande parte apegados aos valores que já foram superados, mas que ainda regem o mundo. Vejamos outro texto muito interessante de Paulo, que fala sobre essa tensão:
Isto, porém, vos digo, irmãos, que o tempo se abrevia; pelo que, doravante, os que têm mulher sejam como se não a tivessem; os que choram, como se não chorassem; os que folgam, como se não folgassem; os que compram, como se não possuíssem; e os que usam deste mundo, como se dele não usassem em absoluto, porque a aparência deste mundo passa.
Paulo está falando deste tempo que resta: o tempo que se abrevia na expectativa da volta do messias. E a tensão que se impõe nesse tempo que resta exige um comportamento cindido, confuso, que está descrito na tensão do “como se não”, ou, no grego, hos mé – que tanto encanta teólogos. E porque o encantamento com essa expressão tão simples? Talvez porque nela reside uma explicação, uma narrativa adequada para a tensão que deve ser expressa no tempo messiânico, por aqueles que aguardam o messias. O que o texto parece nos apontar são situações transitórias que desaparecerão. Ao mesmo tempo, portanto, são situações condicionantes, obrigatórias, inescapáveis. A vida como ela é, muito diferente daquela que um dia vai ser.
Assim, todos os elementos transitórios (que ainda estão presentes) devem ser encarados em sua transitoriedade: casamento, tristezas, riquezas, posses, glória e poder. Vejamos que mesmo para andar pelo caminho estreito e passar pela porta estreita precisamos necessariamente utilizar os elementos da vida – são parte da própria existência. Todos esses elementos devem, portanto, ser usufruídos, utilizados como se não fossem – porque tudo isso passará e porque suas características destoam daquilo que está sinalizado com a vinda do reino.
Talvez tenha sido para fazer essa sinalização que Saulo tenha mudado seu próprio nome para Paulo. Em outro trecho muito conhecido ele propõe uma ideia interessante, Em I Coríntios 1:26-29:
Irmãos, reparai, pois, na vossa vocação; visto que não foram chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento; pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são; a fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus.
E é nessa toada que ele deixa para trás o nome régio Saulo (Saul) por paulus em latim que quer dizer “pequeno, de pouco valor”. Em 1 Coríntios 15:9 Paulo se define como o menor dos apóstolos. Creio que devemos entender esse apequenamento como um sinal da tensão constante que deve haver entre o que é e o que vem, pois é o próprio Paulo, o pequeno, que em outros trechos vai se vangloriar de suas obras, num caso bem específico e conhecido de todos, de seus sofrimentos.
Em Paulo as tensões do tempo presente se mostram de maneira intensa. É ele quem diz que vê em seu próprio corpo uma outra lei que guerreia contra aquilo que sua mente, em boa consciência, quer fazer. Um dos textos mais pungentes da Bíblia, quanto a essa tensão messiânica. O bem que ele quer não consegue fazer. De outra feita, e aqui o exemplo se torna ainda mais interessante, Paulo se autoglorifica dizendo que estava fazendo o contrário – conforme 2 Coríntios 12:2:
Se é necessário que me glorie, ainda que não convém, passarei às visões e revelações do Senhor. Conheço um homem em Cristo que, há catorze anos, foi arrebatado até ao terceiro céu (se no corpo ou fora do corpo, não sei, Deus o sabe) e sei que o tal homem (se no corpo ou fora do corpo, não sei, Deus o sabe) foi arrebatado ao paraíso e ouviu palavras inefáveis, as quais não é lícito ao homem referir. De tal coisa me gloriarei; não, porém, de mim mesmo, salvo nas minhas fraquezas. Pois, se eu vier a gloriar-me, não serei néscio, porque direi a verdade; mas abstenho-me para que ninguém se preocupe comigo mais do que em mim vê ou de mim ouve. E, para que não me ensoberbecesse com a grandeza das revelações, foi-me posto um espinho na carne, mensageiro de Satanás, para me esbofetear, a fim de que não me exalte. Por causa disto, três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Então, ele me disse: A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo. Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando sou fraco, então, é que sou forte. Tenho-me tornado insensato; a isto me constrangestes. Eu devia ter sido louvado por vós; porquanto em nada fui inferior a esses tais apóstolos, ainda que nada sou. Pois as credenciais do apostolado foram apresentadas no meio de vós, com toda a persistência, por sinais, prodígios e poderes miraculosos. Porque, em que tendes vós sido inferiores às demais igrejas, senão neste fato de não vos ter sido pesado? Perdoai-me esta injustiça.
Desconheço outro texto bíblico tão tenso, contraditório e paradoxal como este! Paulo parece viver um misto de emoções e contradições enquanto o escreve. Está extasiado com a “grandeza das revelações”, quer se exaltar porque, ao que tudo indica, ele “deveria ter sido louvado” pelos membros da igreja de Corinto e não foi, enfim, é um ser totalmente deslocado em relação aos demais, e em relação a si mesmo. Para piorar o cenário, de alguma forma ele vislumbra com muita intensidade o tempo que vem, o mundo que vem, olam habba, mas tem que voltar ao tempo messiânico.
O que temos para hoje
Em primeiro lugar, a partir dessa reflexão espera-se produzir um pouco de tensão naqueles que possam estar se sentido excessivamente confortáveis no tempo presente. A identidade com o messias devia nos levar naturalmente a essa crise que é oriunda daquela cisão do tempo, conforme exposto anteriormente. Se temos identidade com Cristo, temos que viver “como se não”.
Em segundo lugar, essa reflexão deve servir para consolar aqueles que não conseguem entender a origem do contínuo desconforto que sentem a despeito de todas as tentativas de viver uma vida sóbria e justa. Não é possível atingir o nirvana em vida. Nosso mundo, nosso tempo, além de carregar a marca da cisão entre o ser humano e o Criador, foi adentrado por um vislumbre da eternidade que torna a existência extremamente paradoxal, confusa, tensa.
Ora, vem Senhor Jesus!