sexta-feira, 1 de outubro de 2021

O ministério da reconciliação

"E tudo isso provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por Jesus Cristo e nos deu o ministério da reconciliação, isto é, Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não lhes imputando os seus pecados, e pôs em nós a palavra da reconciliação. De sorte que somos embaixadores da parte de Cristo, como se Deus por nós rogasse. Rogamos-vos, pois, da parte de Cristo que vos reconcilieis com Deus."

Não há relação autônoma com Deus. Toda expressão de sentimento ou atitude do ser humano para com Deus se concretiza na relação com os demais seres. Assim pensou o apóstolo João que afirmou que não se ama a Deus se não se ama ao próximo. 

Reconciliação com Deus significa reconciliação com o próximo. Não há saída. E, se o ministério da reconciliação nos foi outorgado, cabe-nos viver e pregar a reconciliação neste ambiente de tantos antagonismos. 

Com todos, não somente com alguns.

domingo, 15 de novembro de 2020

Retornando aos meus clássicos - Vattimo

 Há alguns livros aos quais sempre retorno. Naturalmente, como tradição protestante, e por desejo mesmo, sempre revisito os livros bíblicos. Ao lado deles, alguns que tiveram maior importância na formação do meu pensamento também são revisitados continuamente. Entre eles, "Depois de Cristandade", de Gianni Vattimo (1936 - ), filósofo italiano, que me foi indicado há uns dez anos atrás pelo Felipe Coimbra. 

No início do livro, Vattimo narra brevemente seu reencontro com a fé cristã, a partir de uma jornada pela teologia e pela filosofia. Ainda adolescente, "frequentava a paróquia, e foi ali que se formaram as minhas atitudes diante do mundo e dos outros", "queria contribuir para a formação de um novo humanismo cristão, livre tanto do individualismo liberal, quanto do coletivismo e do determinismo marxista" - que tarefa....

Embora não esteja bem claro como isso ocorreu, em algum momento Vattimo distanciou-se desses propósitos originais, e daquela fé desenvolvida na paróquia. Em algum momento posterior, começou a estudar Nietzsche e Heiddeger, que lhe "pareciam ser os críticos mais radicais da modernidade. E foi justamente através destes autores que são não apenas antimodernos, mas também - sobretudo Nietzsche - anticristãos, que fui reconduzido, paradoxalmente, à fé cristã ou a algo que se parece muito com ela".

Para Vattimo, a morte de Deus em Nietzsche, que corresponderia ao fim da metafísica em Heidegger, signficava a possibilidade de dissolver "a ilusão de que se pode demonstrar que o real é feito de  uma determinada maneira e que possui um determinado fundamento definitivo", e de descartar "a teologia natural, que a metafísica escolástica havia construído, com base na razão natural, a existência de um ser supremo - causa, finalidade, etc. do mundo - e, depois, a partir de tal pressuposto, passar a ouvir a revelação". Vattimo deixa de crer "em um tal Deus, no sentido 'forte' da palavra, com se a sua realidade tivesse sido demonstrada melhor do que aquela das coisas sensíveis ou dos objetos da física e da matemática".

Esse é um terreno escorregadio... Que não aceita a teologia sistemática, que não procura definir Deus nem leis fundantes da existência, um Deus que "não 'existe' como uma realidade objetiva fora do anúncio da salvação". E, pior... "Trata-se de um Deus que se apresenta a nós somente no livro, que não 'existe' como realidade objetiva fora do anúncio da salvação que, de formas historicamente mutáveis e predispostas a uma contínua reinterpretação por parte da comunidade dos crentes, nos foi feito pela Sagrada Escritura e pela tradição viva da Igreja".

Esse fio da navalha diz que toda a tentativa teológica humana padece do risco de tentar avançar tanto no conhecimento e na comprovação da hipótese de Deus que se chega à negação da fé, que é o pressuposto de uma possibilidade de relação com Ele. A confirmação da hipótese de Deus é, pois, a negação de Deus. Ele estará sempre inalcançável, ou do contrário não é Deus. E, mais uma vez, pior... trata-se de se desenvolver um conhecimento, de se fazerem reinterpretações, ou, conforme a crise do momento: "atualizações".

Construir a experiência religiosa sobre essa base, ou essa falta de base, parece ser a tentativa de Vattimo: "(...) no Deus da revelação se crê porque 'se ouviu falar' e, portanto, com toda a margem de incerteza que está ligada a todas as coisas que consideramos verdadeiras porque nos foram ditas por alguémem quem confiamos, confiança esta porém condicionada a um sentimento de amizade, de amor ou de respeito". Essa ideia, que me parece um tanto original, é concluída de forma muito provocante:"E, como se sabe, frequentemente o amor é cego e não vê as coisas tal como elas são na sua verdade 'objetiva'".

Procuro não recortar muito mais o texto para que Vattimo mesmo expresse com profundidade sua nova percepção de fê:

"(...) toda autoridade provém de Deus e qualquer afirmação quanto à veracidade ou falsidade de proposições relativas ao mundo se torna possível a partir de uma 'fé' básica que é determinante, mas que possui traços de conjectura, de uma aposta arriscada, ou, enfim, de uma aceitação imposta pela amizade, pelo amor, pela devoçã, pela pietas. Uma semelhante concepção de fé pós-moderna, obviamente, não tem nada a ver com a aceitação de dogmas rigidamente definidos ou de disciplinas impostas por uma autoridade".

Nesse momento, Vattimo aponta para uma necessária consequência deste pensamento no âmbito da eclesiologia - e que mais para a frente no livro ganhará a referência do "cristinianismo arreligioso" de Bonhoeffer: "A Igreja é certamente importante não apenas como veículo da revelação, mas também, e sobretudo, como comunidade dos crentes que, na caridade, ouvem e interpretam livremente (se ajudando e, portanto, igualmente se corrigindo reciprocamente) o sentido da mensagem cristã (...) Talvez somente levando a sério esta utopia, o cristianismo se torne capaz de realizar no mundo pós-moderno a sua vocação de religião universal".

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Passado, presente e futuro

Os evangélicos brasileiros de hoje, em sua maioria, parecem ter pedido a conexão histórica com o catolicismo e com o próprio protestantismo, sua origem mais recente. Tampouco têm expectativas escatológicas para o futuro. Vivem o aqui e agora, apenas.

Em parte, isso pode ter origem numa outra postura, também não muito adequada, na qual vivia-se muito na proclamação das expectativas futuras, com algumas referências ao passado, mas com pouquíssima atenção e adesão ao tempo presente.

Talvez seja o caso de se reequilibrar esses momentos. A experiência judaica e o cristianismo, em particular o cristianismo nascente, caracterizam-se pela forte expectativa messiânica, anunciada no passado, que orientava a vida de seu próprio tempo.

sábado, 1 de outubro de 2016

Dois filhos

O pai pede ao primeiro filho que vá trabalhar na vinha. Ele diz que vai mas não vai. Então o pai pede ao segundo filho que vá trabalhar na vinha. Ele diz que não vai, mas vai. Qual dos dois, então, fez a vontade do pai? Obviamente, o segundo.

Essa simples história parece-me revelar algumas lições importantes.

1. Pouco interessam a esse pai os sentimentos, os desejos e as intenções. Interessa que o filho, de cara amarrada ou não, feliz ou triste, vá trabalhar na vinha. É o que ele precisava que fosse feito naquele dia.

2. Certo e errado não fazem parte desta parábola bíblica. Ao final de contar a singela história, Jesus pergunta: quem fez a vontade do pai? A referência para os filhos é a vontade do pai, que é manifesta, bem clara: trabalhar na vinha.

3. Trabalhar na vinha não é tudo o que os filhos poderiam fazer ao longo do dia, mas é algo que não podiam deixar de fazer. Quanto ao resto do tempo, nada lhes foi pedido.

4. Ao final da história, Jesus diz que meretrizes e publicanos precedem os discípulos no reino de Deus, porque creram. A história nada fala em crer, razão pela qual parece que Jesus iguala crer a obedecer.

São pequenas observações que vão evoluindo ao longo do tempo, e vão consolidando a centralidade desse texto na minha experiência de fé em Cristo.

terça-feira, 14 de abril de 2015

Reflexão sobre o evento cristão

Quase que me desculpando, preciso confessar que não consigo compreender a demanda largamente mencionada de se conhecer Deus. Olho para Deus da mesma forma que o Luki me olhava, se é que posso compreender a relação de meu cachorro comigo: esperando que algo aconteça. Não acredito que o Luki tivesse a pretensão de me conhecer, penso que, na minha presença, a única expectativa dele era algum evento, algum ato.

A vida de Cristo, em particular sua morte e ressurreição, constitui o evento cristão. A partir dele, pode-se procurar conhecer Deus, ou, olhando adiante, especular e promover o evento escatológico.

Em grande parte do movimento protestante, e evangélico, optou-se pelo conhecimento da essência de Deus, nomeando essa tarefa como o grande desafio da humanidade. Desconfio que a tarefa tome tempo precioso, e que não permita qualquer resultado além daquele que o olhar do Luki para mim permitia - nunca vou compreender esse ser, apenas creio em sua existência e espero pelos desdobramentos de seu evento histórico, tentando deles participar efetivamente.

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Cristianismo, Cristocentrismo

Uma pergunta central para a compreensão do fenômeno da formação, expansão e continuidade da religião cristã diz respeito ao seu personagem maior: Jesus, o Cristo. O Cristianismo, afinal, é uma religião fundada na mensagem de Cristo ou na mensagem sobre Cristo? A mensagem de Cristo são suas palavras e ações. A mensagem sobre Cristo é o olhar teológico que Paulo lança sobre Cristo e constrói o fundamento desta religião bimilenial.

A mensagem de Cristo é o reino de Deus e sua justiça. A mensagem de Paulo é Cristo e o significado de sua vida.

Em função da dogmática cristã não é possível discutir as inconveniências percebidas nas contradições entre a mensagem de um e de outro. Por exemplo, é de difícil compreensão a análise teológica que Paulo fornece em Efésios 2:8-10, fundamento do conceito de salvação pela graça, em contraposição com a afirmação de Cristo em Mateus 25:31-46, quando diz que irão para a vida eterna os justos, aqueles que alimentaram os famintos e vestiram os nus. Há que se fazer muita pirotecnia teológica para que seja possível harmonizar esses dois textos. Será necessário dizer que Cristo não queria bem dizer o que disse quando disse o que disse...

São evidentes as distinções entre o pensamento dos discípulos e o de Paulo, e a dissensão entre ele e Pedro. É bastante distinta a experiência da igreja de Jerusalém das demais mencionadas na Bíblia. Não existe qualquer menção de que essas outras tenham experimentado aquela vivência intensa dos valores do reino conforme se viu em Jerusalém. A igreja que viveu a mensagem de Cristo morreu, e permaneceu aquela que foi erigida na mensagem sobre Cristo.

quinta-feira, 27 de março de 2014

Mensagem do deserto - neopentecostalismo às avessas

O esquisito João Batista se alimentava de gafanhoto e mel silvestre, vestia roupas bem diferentes daquelas utilizadas à época, e, ao que tudo indica, morava no deserto. Fora da cidade, ao lado do rio, lançava suas imprecações contra o estado de coisas vigente. Entendia que a sociedade estava corrompida e que todos eram pecadores perdidos. Pregava arrependimento e mudança de vida.

Interessante é que parece que atraía multidões com esse seu jeito extravagante - pelo menos para hoje, não sei bem se era extravagante à época - e com sua pregação condenatória. Instava os ouvintes a se arrependerem para fugir da condenação eterna, pois o juízo se abateria sobre eles: "já está posto o machado à raiz da árvores; toda árvore, pois, que não produz bom fruto é cortada e lançada ao fogo".

Atemorizados, os ouvintes lhe perguntavam: "o que faremos?" E João Batista se revelava um pastor neopentecostal às avessas:

1. Dividam o que têm;
2. Não se aproveitem de suas posições para enriquecer; e
3. Contentem-se com o salário que ganham.

João Batista parece ter sensibilidade particularmente afiada para as questões econômico-financeiros, mas dá conselhos para lá de esquisitos. Não teria chance alguma de ser pastor evangélico.Se entrasse numa igreja evangélica de nossos dias creio que não seria muito bem recebido.

Vale a pena refletir na mensagem do deserto.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Reflexão do Papa Francisco sobre a pobreza

"Economia e distribuição das entradas

202. A necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza não pode esperar; e não apenas por uma exigência pragmática de obter resultados e ordenar a sociedade, mas também para a curar duma mazela que a torna frágil e indigna e que só poderá levá-la a novas crises. Os planos de assistência, que acorrem a determinadas emergências, deveriam considerar-se apenas como respostas provisórias. Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais.

203. A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política econômica, mas às vezes parecem somente apêndices adicionados de fora para completar um discurso político sem perspectivas nem programas de verdadeiro desenvolvimento integral. Quantas palavras se tornaram molestas para este sistema! Molesta que se fale de ética, molesta que se fale de solidariedade mundial, molesta que se fale de distribuição dos bens, molesta que se fale de defender os postos de trabalho, molesta que se fale da dignidade dos fracos, molesta que se fale de um Deus que exige um compromisso em prol da justiça. Outras vezes acontece que estas palavras se tornam objecto duma manipulação oportunista que as desonra. A cómoda indiferença diante destas questões esvazia a nossa vida e as nossas palavras de todo o significado (...)

204. Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado. O crescimento equitativo exige algo mais do que o crescimento econômico, embora o pressuponha; requer decisões, programas, mecanismos e processos especificamente orientados para uma melhor distribuição das entradas, para a criação de oportunidades de trabalho, para uma promoção integral dos pobres que supere o mero assistencialismo. Longe de mim propor um populismo irresponsável, mas a economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno, como quando se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando assim novos excluídos.

205. Peço a Deus que cresça o número de políticos capazes de entrar num autêntico diálogo que vise efetivamente sanar as raízes profundas e não a aparência dos males do nosso mundo. A política, tão denegrida, é uma sublime vocação, é uma das formas mais preciosas da caridade, porque busca o bem comum. Temos de nos convencer que a caridade 'é o princípio não só das micro-relações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também das macro-relações como relacionamentos sociais, econômicos, políticos'. Rezo ao Senhor para que nos conceda mais políticos, que tenham verdadeiramente a peito a sociedade, o povo, a vida dos pobres. É indispensável que os governantes e o poder financeiro levantem o olhar e alarguem as suas perspectivas, procurando que haja trabalho digno, instrução e cuidados sanitários para todos os cidadãos. E porque não acudirem a Deus pedindo-Lhe que inspire os seus planos? Estou convencido de que, a partir duma abertura à transcendência, poder-se-ia formar uma nova mentalidade política e econômica que ajudaria a superar a dicotomia absoluta entre a economia e o bem comum social.

206. A economia – como indica o próprio termo – deveria ser a arte de alcançar uma adequada administração da casa comum, que é o mundo inteiro. Todo o ato econômico duma certa envergadura, que se realiza em qualquer parte do planeta, repercute-se no mundo inteiro, pelo que nenhum Governo pode agir à margem duma responsabilidade comum. Na realidade, torna-se cada vez mais difícil encontrar soluções a nível local para as enormes contradições globais, pelo que a política local se satura de problemas por resolver. Se realmente queremos alcançar uma economia global saudável, precisamos, neste momento da história, de um modo mais eficiente de interação que, sem prejuízo da soberania das nações, assegure o bem-estar econômico a todos os países e não apenas a alguns.

207. E qualquer comunidade da Igreja, na medida em que pretender subsistir tranquila sem se ocupar criativamente nem cooperar de forma eficaz para que os pobres vivam com dignidade e haja a inclusão de todos, correrá também o risco da sua dissolução, mesmo que fale de temas sociais ou critique os Governos. Facilmente acabará submersa pelo mundanismo espiritual, dissimulado em práticas religiosas, reuniões infecundas ou discursos vazios.

208. Se alguém se sentir ofendido com as minhas palavras, saiba que as exprimo com estima e com a melhor das intenções, longe de qualquer interesse pessoal ou ideologia política. A minha palavra não é a dum inimigo nem a dum opositor. A mim interessa-me apenas procurar que, quantos vivem escravizados por uma mentalidade individualista, indiferente e egoísta, possam libertar-se dessas cadeias indignas e alcancem um estilo de vida e de pensamento mais humano, mais nobre, mais fecundo, que dignifique a sua passagem por esta terra.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Amar ao próximo como a si mesmo

O pensamento fragmentário da pós-modernidade encontrou terreno fértil no universo protestante, em função de um dos princípios da Reforma: o sacerdócio universal de todos os crentes. Cada um tem acesso direto a Deus, sem intermediários, abrindo-se a possibilidade de que cada um creia conforme suas próprias convicções e não segundo modelo imposto pela autoridade eclesiástica.

Essa possibilidade contrasta-se com a preferência do crente em ser dirigido por uma liderança, em vez de pensar por si próprio. Os mais astutos "nadam de braçadas" nessa situação, aproveitando-se da ausência de um centro que coordene as atividades religiosas e da boa vontade de fiéis dispostos a segui-los, pagando para isso.

Mais do que um desenvolvimento teológico, o neopentecostalismo é fruto dessa possibilidade histórica, é resultado de um ambiente propício, fértil para seu aparecimento, que só poderia ocorrer na esteira do protestantismo, pelo que já se disse anteriormente.

No ambiente caótico que se instalou, as lideranças do chamado protestantismo histórico projetam duas alternativas: reformar a Reforma, ou promover a unidade. São poucas as possibilidades de sucessos dessas duas linhas de ação.

A Reforma protestante foi realizada por um monge agostiniano contra um inimigo claramente identificável: a Igreja Romana. Essa é uma das razões de seu sucesso. A impossibilidade de reformar a Reforma se estabelece porque não se sabe quem é quem, ou, mais precisamente, contra quem a nova Reforma seria realizada. Quem é inimigo - o neopentecostalismo? Se ele é o vilão, quais são as organizações contra quem o protestantismo histórico vai lutar? Seria impossível delimitar esse universo, em função da enorme fragmentação de comunidades no chamado meio evangélico, cada qual com seus pressupostos teológicos e doutrinários, muitas vezes confusos e não classificáveis.

Promover a unidade do universo evangélico é uma impossibilidade concreta, na medida em que cada igreja protestante tem a faculdade de pensar como quer. E pelo fato de que os líderes dos movimentos de unidade têm óbvias dificuldades em afirmar quem não pode participar deles. O movimento de unidade teria duas possibilidades teóricas de sucesso: primeiramente, a unidade a partir da ação, ou seja, o estabelecimento de uma agenda comum de atividades, que visasse ao bem comum - mas não é razoável pensar na possibilidade de sucesso de uma ação como essa, dado a dificuldade de mobilização e ação social das igrejas evangélicas. A segunda possibilidade, a unidade a partir de um conjunto mínimo de pressupostos teológicos, que pudesse ser ao mesmo tempo catalisador entre os evangélicos históricos e excludente em relação ao neopentecostalismo - ou religião de resultados -, também de difícil concretização.

Não vejo grandes possibilidades de sucesso em nenhuma dessas linhas de ação, embora, no mundo das esperanças, eu vislumbre um universo de cidadãos orientados por uma preocupação minimalista de amar ao próximo como a si mesmo, agindo de maneira responsável em cada situação da vida a partir desse conceito. A crise do protestantismo na pós-modernidade tem a possibilidade de promover o surgimento desse movimento minimalista, que me parece mais próximo daquilo que Cristo viveu e pregou do que as igrejas vêm fazendo ao longo dos séculos.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Impossibilidades da teologia

Teologia é uma tentativa de baixo para cima, do menor para o maior, do finito para o infinito. É tarefa necessariamente inacabada, pois o finito jamais poderia compreender o infinito, até o dia em que o finito se tornasse infinito. Em linguagem bíblica, seria possível ainda utilizar essa lógica para a relação entre o servo e o senhor, a ovelha e o pastor, por exemplo.

Aceitar que alguém, em algum momento da história, ou mesmo mediante um processo histórico já terminado, conseguiu compor um completo conhecimento de Deus, ou ao menos de suas intenções, é a negação da percepção lógica acima exposta.

A crença generalizada de que isso seja possível sempre encontra por trás a noção de privilégio, ou seja, de que o infinito tenha escolhido um determinado finito para a ele se manifestar de maneira especial, dando-lhe o conhecimento pleno de si mesmo. A partir daí, tal finito tornou-se o conhecedor e detentor da verdade.

A despeito de minha tradição protestante, e de minha admiração pelo protestantismo, entendo que essa foi uma prática largamente verificada ao longo da história no âmbito desta tradição religiosa. E não só dela, mas também do cristianismo de maneira ampla e do islamismo.

Pensar assim, no entanto, traz consequências de difícil assimilação. Para alguns, a impossibilidade de conhecimento de Deus (no sentido teológico, não na perspectiva das doutrinas relacionais), ou a ideia de uma teologia sempre em evolução, vai se equivaler à noção de rebaixamento do próprio Deus à categoria de  um deus em construção. Para outros, vai gerar um mundo sem paradigmas, referências ou códigos morais, "indispensáveis" à vivência humana.

Obviamente, dentro dessa noção que nada mais é do que uma adaptação de enunciados filosóficos e epistemológicos à teologia, a crítica imediata diz respeito à possibilidade de que mesmo essas noções a respeito do conhecimento de Deus vão ser superadas mediante a evolução do pensamento teológico, e necessariamente perderão o sentido, fato que revela a consequência do relativismo contido nessa ideia.

Minha saída é a fé em Jesus Cristo, e a aceitação de seu ordenamento de amar ao próximo como a si mesmo na condição de valor supremo e referência absoluta na constituição de qualquer teologia. No final, essa solução equivale a um passo no escuro, a uma escolha, a uma decisão não explicável, e, por definição, dogmática. Dado seu valor reconhecidamente universal, e seu caráter minimalista, parece-me ser uma boa escolha.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Bonhoeffer e o agir responsável


Bonhoeffer acredita que a primeira tarefa ética é a suspensão do conhecimento do bem e do mal. Nossa inclinação é refutar o mal, fugir do caminho mau, e andar pela vereda do bem. Segundo a compreensão de Bonhoeffer, essa é uma armadilha perigosa, pois a queda do ser humano não consiste em conhecer o mal, mas o bem e o mal. Assim, a tarefa imperiosa da ética é a suspensão do conhecimento do bem e do mal. Nessa linha, suspendem-se necessariamente o certo e o errado, a verdade e a mentira.

Bonhoeffer deixa o ser humano sem chão, e, mais particularmente, o religioso. Isso porque as religiões se estruturam em torno de códigos de conduta, que ficam totalmente superados mediante a ideia da suspensão do conhecimento do bem e do mal. O que ele diz teologicamente, e isso vem de sua experiência concreta, é que não existe a definição de certo e errado, ou de bem e mal, por antecedência. Somente na situação concreta é que se define o que fazer mediante o agir responsável, que tem como referência obrigatória o amor ao próximo na mesma medida em que se ama a si mesmo.

Bonhoeffer cunhou tais conceitos na prisão, e não teve tempo de levá-los à experiência comunitária de uma igreja.

Talvez a simples menção ao conceito não nos leve imediatamente à profundidade do compromisso e da responsabilidade que se estabelecem nessa abordagem teológica. Para Bonhoeffer, o agir responsável o levou a participar de um plano para executar Hitler. Segundo ele, seu compromisso com Cristo e com o próximo não deixava outra possibilidade naquela situação.

Seria possível deixar de lado todas as pré-compreensões em favor do agir responsável?

quinta-feira, 4 de abril de 2013

O curioso caso de Benjamin Button

O post de hoje é autobiográfico, e nada tem de teológico. Só está aqui porque ficaria pior escrevê-lo no blog político.

Erasmo Carlos, autor de inúmeras ótimas letras, escreveu entre outras a interessantíssima "Sou uma criança, não entendo nada". A música fala de uma criança que era desculpada pela mãe dos erros cometidos por causa de sua idade, por ser uma criança que não entendia nada. Mas, por dentro era um homem e entendia tudo o que se passava. Após se tornar adulto, o mundo virou de cabeça para baixo: "por dentro, com a alma atarantada, sou uma criança, não entendo nada".

É o curioso caso de Benjamin Button: nasceu velho e morreu novo.

Não fui como Erasmo, pois desde novo, também para os outros eu já parecia velho. E, por dentro, como ele, eu entendia tudo. Entendia demais. Tanto que aos 25 a vida estava toda resolvida, sem nada mais a se apresentar ou a se descortinar. Não que eu fosse um mal sujeito, pelo contrário. Apenas que não havia nada mais a se descobrir, dentro de minha visão reducionista.

Eu tinha a palavra final de tudo, ou quase tudo. A receita era simples: ouvia o que os outros diziam, e ao final  emitia o meu parecer. Neylton desconfiou de mim: porque você sempre fala por último? Num momento de lucidez, confessei: porque acho que sei de tudo... Fui desmascarado diante de mim mesmo.

Na verdade, falar sobre Benjamin Button aqui faz sentido. Isso porque a minha arrogância advinha da falsa percepção que os religiosos têm, e os protestantes em particular, de que conhecem a verdade. E de que a Bíblia tem a última palavra sobre tudo, desde engenharia genética até culinária, passando por astronomia, sexo e esportes.

Dali, aos poucos e bem devagar a princípio, comecei a perder as rugas a caminho da juventude e da adolescência. Hoje já não estou mais tão velho - tenho muitas dúvidas, e nenhuma pretensão de conhecer a verdade. Não chego ao extremo de Erasmo, de ter a alma atarantada e não entender absolutamente nada. Mas, não estou tão longe disso, também, pois a vida as vezes dói na alma, e entender o mundo e as pessoas é muito difícil!

Não sou como o apóstolo Paulo, que quando era menino falava como menino e agia como menino, mas, depois de se tornar adulto, deixou as coisas próprias de menino. Eu retornei às coisas próprias de menino, de adolescente e de jovem, todas essas pessoas que convivem com o adulto antigo que existiu desde sempre e também continua ativo. Talvez um caso mais complicado do que os de Benjamin Button e Erasmo Carlos.

domingo, 10 de março de 2013

Jesus e o templo

É pouco provável a presença de Jesus no templo.

Ele lá esteve duas vezes. Na primeira, quando subiu com seus pais para adorar, fez o que pode para impressionar, para aparecer, talvez por causa da idade. Não voltou com sua família para casa depois dos sacrifícios; ficou discorrendo seu conhecimento para impressionar os mestres da lei. Quando encontrado por seus pais aflitos, saiu-se com uma pérola: vocês não sabiam que me cumpria estar na casa de meu pai? Deixou todos calados.

Alguma coisa aconteceu ao longo de um tempo aproximado de vinte anos: Jesus mudou muito, ou o templo mudou muito. De fato, quem mudou foi Jesus. Já maduro, e completamente consciente de sua caminhada, sua próxima visita ao templo não foi lá muito agradável: derrubou as mesas dos cambistas, causando um bom tumulto no local. De quebra, disse que aquele local era um covil de bandidos e salteadores.

Uma terceira história precisa ser lembrada, ainda que não se refira à presença de Jesus no templo. Trata-se da destruição causada quando de sua morte, quando o véu do santuário se rasgou.

Não me parecer ser muito boa a relação de Jesus com o templo, aliás, parece não haver relação. Jesus preferiu caminhar pela cidade, entre o povo, a frequentar o templo. Não sei porque seria diferente hoje. Acho que Jesus não gosta muito do templo, até porque parece que o templo carrega em si esse risco grande de se tornar um local de negócios, deixando de lado as ideias de casa do Pai e casa de oração para todos os povos.

sábado, 9 de março de 2013

Reflexões sobre a fé

Tenho concluído que é a fé é um elemento autônomo, sem objeto. Quem tem fé, ordena que uma montanha passe daqui para acolá, e lá se vai o monte de terra. Quem disse isso foi o Senhor Jesus, sem acrescentar qualquer objeto ao elemento fé. Ou seja, Jesus não disse que mover a montanha seria um ato de fé nele, Jesus, mas, simplesmente, um ato de fé.

A fé é um elemento raro - graças ao próprio Deus, que é quem a dá, visto que segundo o apóstolo Paulo se trata de um dom. Mas ele a dá com parcimônia. Imagine, por exemplo, que se Ele me tivesse dado fé, o Aconcágua já estaria ali no Parque Nacional, entre a Granja do Torto e o Colorado. E, depois dessa extravagância, eu traria também alguns dos lagos que circundam San Martin de Los Andes.

Concluo, também, que se a fé é dom, não há como desenvolvê-la, fazê-la crescer. A fé existe ou não, se manifesta ou não, aparece ou não.

Parece-me, também, que há duas naturezas distintas para a fé. Primeiramente a fé que crê: eu creio em Deus, embora nunca o tenha visto. Eu creio na ressurreição de Cristo, embora não tenha sido transmitida pela TV. Em segundo lugar, a fé que faz: é essa que traz o Aconcágua para Brasília.

A primeira fé é indispensável para a construção da esperança. Alguns vão brigar comigo dizendo que é o oposto. Mas, vou ficar com essa sequência mesmo, pelo seguinte: é minha fé na ressurreição de Cristo que me faz esperar a redenção. Então, a fé é indispensável para a construção da esperança.

A segunda fé é um perigo. Basta pensar que eu sou capaz de trazer o Aconcágua para Brasília, para satisfazer meus desejos pessoais. Mas, antes de prosseguir, mais uma distinção conceitual é importante. É necessário pensar em utilização excludente e includente da fé. Veja, o pai que pede proteção ao filho que sai dirigindo a noite não condenou ninguém a algum tipo de perda se o pedido for atendido. No entanto, se eu trouxer o pico mais alto das Américas para Brasília, vou gerar muita tristeza de gente que não mais poderá contemplá-lo.

A fé excludente, portanto, é um perigo. Se eu quero ficar rico, alguns vão ficar pobres. Se eu quero um carro novo, alguns terão um carro velho. Se eu quero muita terra para mim, alguém vai ficar sem terra. E por aí vai. É a fé egocêntrica, que só pensa em si.

Marco Feliciano subiu ao palco de sua igreja e começou a falar sobre o sofrimento em Darfur. Pediu que todos esquecessem suas dores e crises naquele momento para juntos intercederem por aquela terra esquecida. Depois de grande pranto e quebrantamento, decidiu doar 90% do que tem para os miseráveis de Darfur, e convocou os ouvintes a darem com liberalidade também. Eles oraram com fé, e se fez paz em Darfur. O dinheiro enviado ajudou na reconstrução. Se Jesus ressuscitou, e assim eu creio, tal conversão de Marco Feliciano é possível, e assim eu espero.

Até Marco Feliciano será redimido.



terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Evangelização

Nunca tive muita dificuldade em comunicar minha fé, e, de maneira mais específica, tentar levar outras pessoas a crer no que creio - ou, evangelizar no sentido usual da palavra no meio protestante. Já fiz de tudo em termos de evangelização, até mesmo para provar a mim mesmo minha devoção a Jesus Cristo. Agi assim, ao longo de muitos anos - quase trinta e cinco, considerando que minha militância proselitista começa quando eu tinha a idade de 11 anos.

Fico um pouco pasmo com a dificuldade que outros crentes têm de comunicar sua fé. Há pouco tempo atrás, a igreja que frequento resolveu transferir sua atividade da manhã de domingo para o eixão. Lá fui eu. Entendi que a ideia era evangelizar os transeuntes. Peguei os folhetos e fui fazer isso - praticamente sozinho. Fiz apesar de não mais entender que a boa nova do reino deva ser comunicada com propósitos proselitistas, e, sim, ser vivida no dia a dia.

Deixar de crer que se deva cooptar outros para sua própria fé é um alívio. Pois o crente sempre se sente em dívida com Deus e todos, porque não tem coragem de pregar o evangelho, e muitas almas podem ir diretamente para o inferno se não acatarem a mensagem da salvação em Cristo. Assim, aquele que deixa de crer nessa imposição, sente-se livre de enorme peso.

E, qual foi a mudança que me fez parar de pregar o evangelho?

Em primeiro lugar, a ideia de que existe uma contradição entre salvação da alma e ressurreição dos mortos, e que a pregação genuína do cristianismo é a segunda opção, e não a primeira, que seria uma herança grega embutida no cristianismo, conforme nos explica Oscar Cullmann. O que estaria a nossa frente seria a redenção da humanidade, mediante a ressurreição dos mortos, e não a salvação das almas daqueles que confessaram o nome de Jesus Cristo como seu salvador pessoal, ainda em vida, mediante um passo de fé.

Essa compreensão desloca a atenção que o cristão coloca nas regiões celestes e no futuro distante para a terra e o presente. A redenção que ocorre na história vem como promessa mas é construída pelos discípulos do Salvador.

Em segundo lugar, porque a conversão a um credo e a um código moral não me parecem, hoje, fazer algum sentido. A conversão que a cruz de Cristo requer de alguém é a conversão ao próximo, como única forma de se converter a Deus. Ainda que seu nome não seja confessado em alta voz. A confissão silenciosa de quem ama é muito mais concreta do que a confissão barulhenta de quem continua amando mais a si próprio do que ao próximo, este mal que é a fonte de toda a corrupção humana.

Em terceiro lugar, porque não faz sentido acreditar que a salvação de alguém, qualquer que seja a compreensão desse conceito, depende de uma pregação e uma conversão a um credo. Se isso faz algum sentido, mesmo no ocidente cristão seria impossível oferecer tal pregação a todos, o que se dirá da África e da Ásia.

Conquanto o discurso acima possa - e vá ser - rotulado de liberal, o fato é que a opção pela vivência da boa nova do reino, com suas exigências, é uma tarefa muito mais dura do que o exercício da pregação evangelizadora. É fácil passar a manhã de domingo no eixão distribuindo folhetos e levando a mensagem da salvação, conforme a entende o protestantismo ortodoxo. Difícil é atender às exigências desse evangelho, ou à exigência do evangelho, que é única: amar ao próximo como a si mesmo.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Salvação da alma x ressurreição dos mortos em Les Miserables

Creio que Les Miserables ainda vai render alguns dias de reflexão, tal o impacto que o filme me causou. Como eu nunca havia visto antes, a história propõe a acomodação de dois conceitos cristãos excludentes: salvação da alma e ressurreição dos mortos. Jean Valjean é liberto de seus sofrimentos e recebido na eternidade, cena que é seguida da imagem de Paris redimida e dos insurgentes ressuscitados.

A letra da música final é maravilhosa, e aponta para a redenção da humanidade:

Do you hear the people sing?
Singing the song of angry men?
It is the music of a people
Who will not be slaves again!
When the beating of your heart,
Echoes the beating of the drums,
There is a life about to start,
When tomorrow comes.

Will you join in our crusade?
And will be strong and stand with me?
Beyond the barricade,
Is there a world you long to see?

Then join in the fight,
That will give you the right to be free!

Will you give all you can give,
So that our banner may advance,
Some will fall and some will live,
Will you stand up and take your chance?
The blood of the martyrs,
Will water the meadows of France.

Há uma vida pronta para começar, mas depende de luta, de engajamento. O reino dos céus vem por esforço. A redenção vem na história mediante a participação humana, ainda que seja prometida.

Você vai se juntar à nossa cruzada? Você deseja viver em um outro mundo, que se vê somente por trás da barricada? Nessa jornada, alguns vão cair - você está disposto a correr o risco? A lutar para libertar os escravizados? Há pessoas cantando e marchando, você consegue ouvir? Mas só venceremos quando o bater dos corações superar o bater dos tambores - há pouca gente nas barricadas.

Talvez seja melhor continuar tranquilo, deitado no sofá da sala, aguardando a salvação da alma.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Os miseráveis

Assistir a um filme como Les Miserables é um misto de emoção profunda e desabafo. Emoção profunda por ver as boas novas do reino serem pregadas de maneira tão bela. Desabafo contra uma igreja da qual talvez eu já devesse ter desistido, por sua incapacidade absoluta de entender o que significa seguir a Cristo.

Em duas ou três horas a magnífica história de redenção individual e comunitária é explicada de maneira clara como dificilmente ouvimos vindo dos púlpitos das igrejas.

"Do you hear the people sing" me comoveu. Você pode ver algo além das barricadas? Há, sim, uma redenção prometida, da qual somos partícipes ativos, atores. Sem barricadas ela não virá. Foi prometida, mas precisa ser alcançada por meio do esforço.

"Show some mercy" ou algo assim é um denúncia poderosa contra a pobreza, tolerada e perpetuada pelos insensíveis.

Há muitas outras belas lições no filme. Inúmeras. Que história!


domingo, 11 de novembro de 2012

Campos missionários

Era um domingo de manhã, há quatro anos, atrás, quando eu entrei no plenário central da XIII IACC (Conferência Internacional Anti-Corrupção), promovida pela Transparência Internacional (TI), em Atenas. O ambiente era de culto protestante, sensação que aumentou quando Frank Vogl tomou a palavra e discorreu sobre salvar os pobres de sua pobreza.

Frank Vogl é a alma do movimento criado pela TI, seu profeta visionário.

O ânimo daqueles que lutam contra a corrupção assemelha-se ao dos missionários protestantes que partem para todas as regiões do mundo desejosos de compartilhar as boas novas do evangelho. O ambiente no qual se travam os debates se assemelha em espiritualidade aos congressos missionários dessas igrejas.

Para Gianni Vattimo, esse tipo de atividade (combate à corrupção) é nada mais nada menos do que a vivência concreta da mensagem de Cristo, no âmbito do processo de secularização que não significa uma superação do cristianismo, mas sua extensão às questões concretas da humanidade. Esse processo seria, portanto, intrínseco ao cristianismo.

Ontem tivemos o encerramento da XV IACC, aqui em Brasília. No "culto" de encerramento, Barry O'Keefe indicou o país escolhido para a próxima IACC: a Tunísia. Emoção no Plenário. A Jasmine Revolution, que tirou do poder o ditador que por ali ficou por 23 anos ainda é fato recente. Segundo o representante do governo tunisiano, presente ao encontro, aquele país deseja seguir no caminho da integridade na gestão dos recursos públicos. Enquanto ele discursava, eram exibidos slides da revolução, dos protestos, das marchas, das caminhadas. Fiquei emocionado.

Salvo algum fato de maior importância, estarei na Tunísia em 2014, esse campo missionário.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A Reforma Protestante


Fazendo uma análise sincera do quadro protestante atual, parece que não há muito o que comemorar no 495º da Reforma Protestante. Em 31 de outubro de 1517, o monge agostiniano alemão Martinho Lutero pregou (literalmente) 95 teses na porta da Catedral de Wittenberg, cidade da saxônia alemã. Tal documento poderia ser pregado hoje, igualmente, em portas de igrejas evangélicas em protesto contra suas práticas extremamente parecidas com os exageros de Tetzel[1].

Roger Olson[2], em seu ótimo livro História da Teologia Cristã, resume o corpo central da teologia protestante em três pilares aceitos amplamente pelas denominações históricas: a) a salvação pela graça mediante a fé; b) o sacerdócio universal de todos os crentes; e c) a autoridade suprema das escrituras. Já procurei tratar, anteriormente, de uma proposta de revisão desses institutos em post do dia 4/12/2009, o que não é o tema deste comentário.

No entanto, a característica primária do protestantismo não é seu ideário, ou sua teologia. Antes, o marco central deste movimento é o protesto em si, é a capacidade de rebelião contra um estado de coisas que obscurece Cristo, sua vida, sua cruz e sua ressurreição. Nessa perspectiva é possível o resgate protestante, enquanto tal tarefa é impossível na perspectiva teológica.

A impossibilidade do resgate se dá por dois motivos. O primeiro deles, em função da necessária superação daqueles três institutos teológicos mencionados anteriormente, conforme a análise proposta no texto citado de meu blog, considerando que os reformadores de hoje querem uma volta àqueles princípios. O segundo, porque a ideia do sacerdócio universal de todos os crentes é o germe da autodestruição do protestantismo enquanto sistema teológico, devido à sua necessária fragmentação, largamente praticada atualmente. É impossível reverter esse quadro.

Em minha análise limitada e tendenciosa, considero fundamental e positiva a contribuição do protestantismo para a formação do Ocidente, que segundo Vattimo[3] deve ser necessariamente identificado com Cristandade. Para ele, o atual fenômeno de esvaziamento do cristianismo, na Europa, é um processo interno, intrínseco ao cristianismo, e não sua superação, situação essa que se estabelece, principalmente, no seio das igrejas protestantes. A consequência natural desse pensamento é ver na evolução política desses países a transposição dos valores cristãos – e notadamente protestantes – para a prática quotidiana comunitária, em um movimento que não mais se vale da figura de Cristo mas o segue de maneira concreta.

Do outro lado do oceano, a nação que continua firme em sua prática religiosa mantém profundas rupturas internas, e, no âmbito externo, conspira politicamente contra regimes que a desagradam chegando a despejar bombas sobre alguns deles. O esvaziamento do protestantismo europeu, assim, seria um caminho mais identificado com Cristo do que o protestantismo norte-americano, considerada principalmente sua vertente fundamentalista.

Nesse quadro, ao qual necessariamente acrescentamos a realidade brasileira, muito distinta da europeia e da norte-americana, como já se disse, não cabe a hipótese de resgate teológico do protestantismo, a despeito da boa intenção de muitos pregadores que ressuscitaram mais recentemente a temática da salvação pela graça, mediante a fé somente. Pois esse resgate, além de inviável, dado à fragmentação do universo protestante, não faz sentido quanto ao conteúdo dos fundamentos teológicos, em um mundo cujas perguntas não mais podem ser respondidas por eles.

A alma protestante, no entanto, como já se disse, é o protesto. E, nesse sentido, o protestantismo está vivo, até mesmo naqueles que procuram promover o seu resgate teológico.

Penso que a possibilidade de protesto nos dias de hoje é um retorno minimalista à vida e à pregação de Cristo, ao discipulado como identidade com o Mestre, e à circunscrição de toda experiência religiosa à sua mensagem central: amar ao próximo como a si mesmo. Fora disso, creio que são muito pequenas as possibilidades de permanência e relevância de qualquer movimento que queira manter a identidade cristã. O retorno minimalista a Cristo, no entanto, não prescinde da denúncia, entre outras também possíveis, contra o maquiavelismo das igrejas neopentecostais, a insanidade das igrejas em células que promovem o cabresto dos crentes como sinônimo de discipulado, a dominação das igrejas históricas pelos seus clérigos e o poderio e ostentação ainda perturbadores da igreja católica.



[1] Johann Tetzel foi padre dominicano, célebre pela venda de indulgências para a construção da Basílica de São Pedro, considerado o autor da frase “ao som de cada moeda que cai neste cofre uma alma desprega do purgatório e voa para o paraíso”.
[2] Professor de Teologia na Baylor University, Waco Texas.
[3] Filósofo católico italiano.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

O discípulo precisa professar o nome do mestre?

Nova pausa em Isaías - cujo estudo provoca reflexões intensas.

Um discípulo precisa professar, divulgar o nome de seu mestre para ser efetivamente discípulo? Se eu adotar a resistência não-violenta diante de uma situação crítica de opressão não irá demorar muito para que alguém me qualifique como discípulo de Mohandas "Mahatma" Gandhi, ou de Martin Luther King. Ainda que eu mesmo não tenha conhecimento da existência desse movimento na história.

A obrigatoriedade existente no protestantimo de se professar o nome de Cristo como condição para a salvação conduz a uma situação contraditória: professantes que não são discípulos, pois não imitam o mestre. De outro lado, há aqueles que amam o próximo como a si mesmos sem professar o nome de Cristo. São eles seus discípulos? É possível ser discípulo de Cristo sem professar o seu nome?

O próprio Cristo nos traz uma situação análoga. O pai pede a dois filhos que façam algo. Um diz que faria mas não faz. O outro diz que não faria mas faz. Cristo pergunta: quem fez a vontade do Pai? Temos que avaliar bem o valor relativo da confissão, particularmente quando ela é absolutamente despegada da prática da vontade do Pai.